Sumidouro: Cascata Conde D'Eu (Terceira Parte)


O relógio marcava mais de quatro horas quando adentrei o vale encantado de verde estonteante, mata fechada aos montes e riachos taciturnos correndo por entre as pedras. O sol ainda estava forte, mas já se preparava para o grande espetáculo de se pôr. Seus raios seguiam minha visão e dançavam pelos morros de pastos vicejantes. Àquela tarde o céu ganhava um azul único e a estrada de terra batida delineava seu percurso naquele esplendor natural que se revelava. O rumor da cascata monumental aumentava como se fosse uma lenda há muito esquecida. Um burburinho a cada curva enchia meu coração de esperança para avistá-la: a magnífica cachoeira e seu cenário hipnotizante, dona de antigas histórias cujas brumas guardavam uma relação encoberta com o romantismo no Brasil. 

Tratava-se da maior queda d’água do estado do Rio de Janeiro. Um verdadeiro espetáculo da natureza vacilante ao vento, como um véu esbranquiçado pairando ao precipício. Foi em 1877, num almoço faustoso aos pés da cachoeira, quando Dom Pedro II, extasiado por tamanha graciosidade, batizou-a em homenagem ao seu genro, marido da Princesa Isabel. O atrativo então passou a se chamar Cascata Conde D’Eu. O porquê da nomeação foi descoberto há muito pouco tempo por um pesquisador que, por meio de sua sinuosa pesquisa, pôde ilustrar na mente dos amantes da literatura o diálogo de Dom Pedro nesse almoço especial para com o conde cujo nome recebera a grandiosa queda d’água. 

A joia do Paquequer fora visitada pelo imperador em tempos de outrora; tempos em que a mata atlântica era viva e soberana na região; tempos em que a literatura ganhava força pelo romantismo; tempos de descobrimento das preciosidades que o novo mundo desvendava em suas entranhas. Anos antes de Dom Pedro colocar os seus pés na região, José de Alencar escrevera O Guarani, em cuja narrativa estão indícios descritivos do espetáculo imponente. Teria o autor, patriarca da literatura brasileira, se inspirado pelas belezas de Sumidouro ao escrever seu clássico romance? A tradição diz que sim. Existem também em sua narrativa romântica coincidências com a descrição do atrativo. Como em um trecho discorrendo o rio Paquequer desaguando no Paraíba, e sua íngreme e abrupta queda d’água: 

“É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito. [...] Ele deve ser visto [...] três ou quatro léguas acima de sua foz, onde é livre ainda, como o filho indômito desta pátria da liberdade. Aí, o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito, e atravessa as florestas como o tapir, espumando, deixando o pelo esparso pelas pontas do rochedo, e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira. De repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um momento para concentrar as suas forças, e precipita-se de um só arremesso, como o tigre sobre a presa. Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra, e adormece numa linda bacia que a natureza formou, e onde o recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes". 

Quando avistei a cascata pela primeira vez, me senti como um personagem perdido na era romancista. Lá estava ela em meio à vegetação de mata fechada. Era mais alta do que a minha imaginação pôde conceber. Aos poucos seus estrondos ficavam mais altos; o som da água batendo nas pedras ecoava pelo vale; a estrada se desbravava floresta adentro e um clima sacramental invadia meu coração. Por um instante perdi sua visão. Estava no meio da mata atlântica de vegetação primária; árvores frondosas extremamente altas compunham as pinturas do céu com suas copas ostensivas. 


Havia uma trilha que levava até às margens do rio. Em um dado instante, a cascata pôde ser avistada entre duas grandes árvores centenárias, que se precipitavam cautelosas aos séculos e se contrastavam com as águas turbulentas despencando da pedreira loureada logo à frente. Pude ver-me em um cenário utópico, dos que descrevem o paraíso com os espetáculos naturais em harmonia ao entorno. Quando, finalmente, cheguei próximo à cachoeira, fui abençoado com o toque da mãe d’água sobre minha fronte. Suas brumas avassalaram-me e encheram-me de júbilo por estar ali, naquele entardecer de inverno. O sol se escondia sobre as grandes pedreiras, deixando as gotículas ao vento em tom dourado, concretizando a fantasia da fonte da juventude e de outras histórias em meu íntimo. Estava grafado nas páginas de um exemplar aventureiro e desbravador de mistérios. 

A cascata se perpetuou em meu coração não apenas como uma lembrança especial, mas como uma experiência mística de contato com a natureza energizada pelo sol e pela água. A floresta se transformou em um templo e as aves eram os anjos que formavam um lindo coral. Ali o Paquequer trovejava suas águas que caiam em piscinas de pequenas cachoeiras, até correr tímido pelo vale infinito. Mais uma vez fui abençoado com a brisa que trazia consigo o véu do precipício. Abri os braços e me senti livre — a liberdade corria pelo meu corpo como o rio que seguia seu curso. Retornei à trilha e olhei para trás por um instante; lá estava ela, entre as árvores. Meus olhos marejaram de gratidão e felicidade; e em um lapso atemporal deixei o meu último adeus à magnífica cascata que há muito soava pelas areias do tempo como um sino de ouro; vez ou outra badalava e trazia suas brumas ao encontro dos aventureiros. A cascata permaneceu na pedreira daquele vale imperecível enquanto partia, mas suas águas passaram a correr dentro de mim em um turbilhão de emoções que dava sentido a minha vida. Havia estado em um lugar mágico, saído das páginas amareladas dos grandes clássicos, e já não podia dizer mais que era a mesma pessoa.

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