Sumidouro: Ponte Seca (Quarta Parte)


Espelhar na vivência toda a historicidade do arcabouço ostensivo presente em Sumidouro é conseguir enxergar além do que a visão pode mostrar; é viajar nas linhas do pensamento projetadas em meio à maestria da obra; é saber decifrar o enigma emocional contextualizado nas paisagens; é sentir na pele a transformação fugaz das épocas; é exercer o papel de aventureiro e mergulhar no oceano de incertezas; é entender que a vida não para e as obras do passado tomam outras interpretações com o passar do tempo. 

Por mais que possamos sentir que temos o controle de nossas ações para traçarmos planos ao futuro, tudo não passa de uma ilusão projetada pelo lento caminhar das décadas. Quantos indivíduos pisaram nesta terra com o desejo de construir impérios e nada levaram senão o esquecimento. Foram noites e noites depositadas na concretização de planos vazios, delineados pela vaidade, que acabaram encobertos pelo manto da noite escura. Caminhando por um centro histórico e observando atentamente os casarios coloniais, reflito que podem ter sido, em datas pretéritas, os lares de tantas famílias com anseios obscuros de aumentar suas posses com o tempo. Pois bem, o tempo passou e com ele também passaram-se as famílias, os anseios e as vaidades. Caíram no poço dos sonhos destruídos. 

A história, de fato, molda a realidade. Muitos ainda não aprenderam que estamos de passagem por este chão que caminhamos dia após dia, e cometem os mesmos erros que outros já cometeram: se munem de autossuficiência e apontam o nariz para as nuvens, impossibilitados de contemplar as belezas da terra. Todo esse contexto enlaçado por nostalgia serve para ilustrar o último lugar descrito na série de quatro artigos sobre Sumidouro: a admirável, porém esquecida, Ponte Seca.
 

Sua preciosidade vem não apenas da grandiosidade de sua estrutura, mas das vidas envolvidas pela curva sinuosa, cujo sustento parte dos grandes pilares de pedras perfeitamente encaixadas umas nas outras. Uma joia arquitetônica perdida por entre vales e montanhas. O trecho integrava o ramal da linha que ligava Nova Friburgo a Além Paraíba, pertencente à extinta Estrada de Ferro Leopoldina fundada em 1874, embora a inauguração da ponte tenha acontecido apenas em 1888, recebendo seu nome justamente por não passar em um único curso d’água que seja. Ponte Seca por conectar lados da mesma montanha, contornando o vale fora a fora em um meandro plantado na campina de nove sustentáculos imponentes, abrindo semblantes espantosos dos que dobram a curva da estrada pela primeira vez. 

Sumidouro atravessou parte do século XIX com inúmeras fazendas cafeicultoras que usavam mão de obra escrava em seus trabalhos. Tratava-se de um verdadeiro polo cafeeiro regional que escoava a produção pelo ramal da estrada de ferro, não levando apenas passageiros em seus trens, mas também toda a safra de café produzida àquela época. A Ponte Seca se consolidou pela ambição dos produtores de café à concretização de seus objetivos, resumindo-se no acúmulo de bens e fortuna. Os negros escravizados sequer sonhavam em usufruir dos vagões dos trens que passavam pelos trilhos nivelados pela ponte que eles próprios haviam construído com dor e suor, marcados pelo sangue vivo escorrendo de suas costas, sem perspectiva de um dia encontrarem a liberdade. Vidas martirizadas que não souberam o que era sonhar, pois lhes foram arrancados a dignidade e o ânimo de viver. Ergueram a ponte inovadora sob as ordens dos senhores de café e instruídos por engenheiros ingleses para que, no fim, o investimento pudesse encher os bolsos dos mais ricos. Os que sujaram suas mãos com a terra não foram contemplados com os benefícios que a ponte trouxera; voltaram às suas vidas marginalizadas na diminuta esperança de um dia se soltarem das correntes do corpo e da alma.


No mesmo ano em que a ponte foi inaugurada aconteceu a abolição da escravidão no Brasil, sendo o atrativo arquitetônico, talvez, o último grande projeto corporificado por escravizados da região. Quando estive no local, não divaguei por esses acontecimentos do passado. Tais informações vieram apenas depois com o desejo da escrita. O lugar representava mais do que eu podia imaginar na minha concepção histórica e isso me levou a crer que a riqueza cultural de Sumidouro era maior do que havia pensado na primeira vez que pesquisei sobre a cidade. 

O desejo enlouquecido dos cafeicultores pela Ponte Seca não foi suficiente para que a mesma caísse em esquecimento. Quando avancei pela estrada de terra que permitia acesso à ponte não havia nenhuma casa ou estrutura por perto; apenas plantações e fazendas. Nasceu então a incerteza de que estava no caminho certo. Poucas curvas depois ela me surpreendeu com sua imponência: pedra em cima de pedra; os blocos se revelaram em mosaicos bem estruturados que, ao longe, se assemelhavam com as grandes estátuas da Ilha de Páscoa. Era difícil crer que durante muitos anos aquela área fora bem movimentada e que os apitos dos trens que frequentemente avançavam pelas colinas da região serrana do estado do Rio de Janeiro ecoavam por ali, percorrendo a ambiciosa Estrada de Ferro Leopoldina. 

O sol já se punha no instante em que subi até o lugar onde havia os trilhos. A vista estava encantadora com os tons dourados do entardecer. Foi sorte a minha ter visitado Sumidouro em um dia tão bonito de inverno. Lá do alto a estrada serpeava nas montanhas e tudo parecia minúsculo; plantações de bambu, pontos preservados de mata atlântica, bosques vicejantes, caminhos gravados nos montes que ninguém sabia onde levavam. A vegetação aos poucos ia invadindo as pedras e pequenos arbustos surgiam ao lado dos grandes pilares que agora só serviam para relembrar um tempo distante. 

Há muitos anos a ponte não ouve mais o barulho dos monstros movidos a vapor que desbravavam aquelas terras, tampouco sente o peso que sustentava com seus nove pilares rompendo a montanha. Secou com a brutalidade das estações; a estrutura ambiciosa transmutou-se em ruínas, destruindo para sempre a avidez dos senhores de café que escravizavam para concretizar seus projetos. Talvez sua sequidão não venha apenas da falta do curso d’água que a nomeou, mas também da falta de proposito para com sua real finalidade: transformou-se num fantasma, num sonho que acabou; chama apagada na noite do tempo, restando apenas a memória dos dias dourados em que grandes máquinas cruzavam as campinas, desenhando suas peripécias por onde passavam.

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