A Caixa Formadora de Palavras

Às vezes abro a caixa formadora de palavras na esperança de encontrar um caminho. Eles, por sua vez, se misturam em meandros literários e, partindo da imaginação plantada no interior da pequena e frágil caixinha, começam a imprimir sílabas de uma história desorganizada. Sabe qual é o papel do escritor? Pegar cada uma dessas sílabas e encontrar o dito caminho certeiro por conta própria. Só ele é capaz de decodificar o segredo da caixa. Pois a mesma se mostrar em diferentes fases, como uma lua, invisível aos olhos, capaz de concretiza as estações da alma.

Ter uma caixa dessas é viver esperando pela história perfeita. E ter consciência de que ela não existe. Afinal, no engendro de significados interpretativos não existe uma palavra solitária. Ela se junta às demais para conduzir o leitor em meio aos múltiplos universos criados a partir da sensibilidade do artista. Se voltarmos à alma iluminada pela lua, veremos que as fases são regadas por sentimentos diversos. E estes não são domesticados. 

Na essência existe uma selva onde sentimentos se transformam em feras. A selvageria rasga os papéis indicados e eles se misturam formando um escarcéu de desespero. Tudo para saber quem será o escolhido da vez. Ora vem a tristeza infiltrar-se na caixa, trazendo consigo um amargo tom de solidão, e faz das palavras uma fonte de sofrimento. Ora, a alegria. Esta, amável, abre os braços para acolher o máximo de sentimentos possíveis. E com seu abraço é capaz de levar muitos consigo, a fim de fazer o artista deleitar-se com a abundância sentimental que encontra no fundo de sua caixa outrora tão fria e vazia.

Por vezes, uma forma curiosa se apresenta em seu interior. Incompreendida, ela expele as palavras por não aguentar segurar a opressão da caixa fechada. De lá saem estrelas cadentes, ecos ritmados, pétalas coloridas e penas de um voo fracassado. A forma curiosa se expande e se contrai, pulsa, e faz a caixa se abrir por conta própria. O escritor corre e tenta recolher a bagunça de voltar ao interior. Tudo em vão. As palavras transbordam e se perdem nos precipícios do inconsciente.

Agora eu me encontro no campo minado das frases. Elas romperam os limites e se espalharam pelo horizonte; uniram-se aos pores-do-sol e até onde os olhos alcançam, no ponto em que o céu beija a terra em cores do alvorecer. Às noites, elas reluzem sob as estrelas e cantam músicas para serem ouvidas. Na campina prateada, completamente vazia de transeuntes, apenas um espectro se eleva com seu alforje surrado recolhendo as sílabas desajeitadas. Ele caminha arranhando suas pernas no mato rasteiro mas não se importa com as marcas na pele, pois as únicas que o atingem são as do coração vazio.

Por isso ele peregrina incansavelmente, recolhendo cada palavra perdida para preencher o espaço em seu íntimo. Não se importa com o reconhecimento. Apenas com os passos; um atrás do outro; morosos e inábeis; cambaleantes nos prados solitários das palavras dispersas.

Quando o primeiro raio da manhã rompe a neblina, e o capim orvalhado percebe o espetáculo do arrebol no firmamento, o espectro se desfaz em fina areia e some com o alforje das palavras ao vento. Era ele o tal escritor desconhecido, que tratava as palavras como flores de um jardim em tempos de sequidão. Ninguém sabia seu nome, tampouco sua morada. Era o caminhante das noites sem fim, com a profundidade do universo em seus olhos. Sumia pelas manhãs com seus feitos noturnos e com as palavras acolhidas para habitar as terras dos sentimentos incompreendidos, presos em pequenas caixas trancadas pela insensatez.

Dizem os mais sábios que, uma vez neste campo, as palavras se encaixavam nas fechaduras pelas mãos do escritor e libertavam os sentimento que voavam como aves estivais. Contudo, elas precisavam preencher os espaços resultantes com versos de uma aventura findada, e acabavam prisioneiras de sua própria missão, em linhas contínuas de uma mensagem escrita. A caixa então se fechava e lá elas ficavam, formando-se umas as outras, descontroladamente. Até que, então, alguém as encontrava ou elas por si só se expandiam para romperem as paredes e se espalharem mais uma vez pelos prados da noite sem fim.

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