A Casa dos Passarinhos


Alguma história fugiu das páginas para se pendurar numa árvore, vestiu-se de barro ornamentado e fantasiou-se de casa dos pássaros para se fazer presente no mundo real. Na árvore, a história ganhou vida ao som dos sonhos voláteis que ouvia nas noites de chuva; eram as aves tristonhas contando as peripécias do dia. Ao verem aquele abrigo chamativo, não hesitaram em entrar. Ali fizeram morada, mas logo partiram. Não aguentaram viver em um conto de fadas por muito tempo. Sentiam falta das emoções e desafios que um ninho feito no bico trazia. A casinha, então, presenciou o último voo de suas companheiras e ecoou a solidão pelo espaço vazio de suas entranhas.

À noite chegaram os vaga-lumes. Acenderam-se no esplendor de sua fosforescência. Era a magia acontecendo de novo na velha casa dos passarinhos. Sentia-se um santuário aos pequeninos seres da luz e, durante toda a passagem do manto noturno, vibrou de contentamento por se declarar preenchida. Sua desilusão veio apenas de manhã, quando os pirilampos se foram. E ela, mais uma vez, se encontrava sozinha e dependurada no vão de seu sofrimento.

A casinha viu que nada podia fazer. No mundo real era apenas um objeto de barro surrado que passava despercebido aos olhares superficiais, mas na fantasia era tida como o faustoso abrigo das fadas, dos seres da floresta, dos sentimentos latentes e das flores perdidas. Pela primeira vez ela quis voltar, porém não se lembrava do caminho. Teve de se contentar com as migalhas de pequenas formigas que, vez ou outra, invadiam suas entranhas para se protegerem da ventania enquanto carregavam as folhas ao formigueiro. 

Os anos foram passando, bem como as tempestades dos incontáveis verões; e pouco a pouco o barro modelado foi se desgastando com o tempo. A casinha não tinha mais o mesmo esplendor, mas insistia em manter-se de pé frente a trivialidade do mundo fora das páginas. Permaneceu assim, vazia e sem cor, até a chegada do outono; onde a árvore que lhe servia de apoio perdera todas as folhas.

Ao longe, ela percebeu a presença de alguém impressionado com sua beleza cativa, quase esquecida. Eram olhos profundos de uma alma velha que caminhava pelo mundo real colecionando recordações. Pegou uma tela e a pintou como forma de perpetuar o instante. A casinha de barro então percebeu o que estava acontecendo. Saiu das páginas, vagou pelas noites do tempo e encontrou seu caminho na tela de um artista cansado pelas curvas da vivência. Alguém que teve a sensibilidade de percebê-la numa árvore seca, definhando pela ausência de alvoreceres.

Daí ela ganhou novas cores e contornos, viajou para além de suas amarras e pôde abrigar de novo as imaginações de suas primaveras. Perpetuara-se na arte pelos traços de um andarilho perdido, buscando expressar seus anseios mais profundos nas tintas ressequidas em seu alforje de aventureiro. Contudo, a casinha não deixara sequer sua essência. Honrara os primeiros moradores que tivera nas tardes chuvosas dos anos precedentes, e identificava-se como a casa de pássaros do mundo real. Já que agora estava vivendo uma fantasia, aquela com a qual sonhara entre suas reminiscências, não precisava munir-se de fábula para experimentar uma. As fadas, de fato, iam até ela; e lá contavam histórias que fortuitamente escapavam por suas asas e abrigavam-se nos galhos de uma árvore velha, escondida nas entrelinhas do mundo real.

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