Peiwoh e a Harpa de Lung


Muito aflito, o imperador da China andava em círculos pelo palácio. Peiwoh tardava a chegar. Talvez nem soubesse que era esperado com tanta ansiedade. Todos os outros músicos do reino haviam fracassado. Só conseguiram extrair da harpa de Lung notas ásperas e desafinadas. Ninguém pudera arrancar uma única melodia de suas cordas.
Essa harpa tinha sido uma esplêndida árvore. Na floresta de Lung, ela sabia levantar a cabeça para conversar com as estrelas. Suas raízes penetravam fundo na terra, misturando-se com o dragão prateado que ali dormia. E aconteceu, certa noite, que um feiticeiro transformou a árvore numa harpa teimosa.
Finalmente veio Peiwoh, apresentou-se ao soberano e logo acariciou a harpa, como se procurasse domar um coração selvagem. Tangeu com doçura suas cordas. Cantou a natureza, as estações, as montanhas, os rios. Então, uma a uma, todas as lembranças da árvore-harpa acordaram. A primavera de novo brincou entre seus ramos. Outra vez se ouviram as vozes sonhadoras do verão. Depois, a Lua voltou a brilhar no céu de outono. Agora, é inverno e a neve bate com gosto nas folhas das árvores. Quando Peiwoh falou do amor, a floresta inteira inclinou-se como um ardente namorado. Mas Peiwoh também cantou a guerra, com suas espadas reluzentes e cavalos barulhentos. Na harpa ergueu-se a tempestade, o dragão montou o relâmpago e o trovão ressoou pelas colinas. Extasiado, o imperador chinês perguntou a Peiwoh qual o segredo de sua vitória.
"Senhor", respondeu ele, "os outros falharam porque só cantaram de si mesmos. Deixei à harpa a escolha dos temas, e não sei se a harpa transformou-se em Peiwoh ou Peiwoh se transformou em harpa."
Esta lenda mostra um pouco da essência da arte. A verdadeira arte é Peiwoh e nós somos a harpa de Lung. Ao toque estimulante do belo, as mais secretas - cordas de nosso ser despertam e vibram. Escutamos o não-falado, contemplamos o não-visto. Lembranças esquecidas, desejos irrealizados, esperanças sufocadas voltam com um novo sentido: uma obra pertence a nós mesmos, assim como nós pertencemos à obra de arte.

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