Singela Cascata

singela cascata

Hoje te contemplei, singela cascata; quase ofuscada em derradeiros rasantes, mas muito apreciada em páginas já esquecidas ou arrancadas de trágicos exemplares. Isso me fez pensar na vida: tuas águas minguantes outrora tão quistas, como puderam transpassar a história para o lado absorto da vivência? E apesar da sombra estampada pelas pedras molhadas, com ares de dias já findados, a pequena e tímida queda ainda compõe uma canção às aves que ali se banham.

Tudo bem, cascata acanhada. É trabalho do tempo fazê-la correr por entre os rochedos e encontrar caminho na densa mata fria. Para que se lembrar da história agora? Só te traria tristeza, quando por conseguinte viesse ao reflexo de dias azulados o rubro tom do sangue derramado em suas margens agora tão plácidas. Quantos ali perderam suas vidas, banhando as feridas e enterrando os sonhos? Se eu soubesse a resposta, quem sabe teria tuas feições em meu rosto no instante em que meus olhos cruzaram teu reflexo. E outras cascatas escorreriam rumo ao chão batido, não apenas por meus passos descontrolados mas também pelo suor de quem deu sua vida para a terra germinar os grãos plantados.

Não se entristeça pela história perdida, cascata. Deixe a tristeza para as pessoas que sequer enterraram seus antepassados. Seu dever é correr para sempre, perdida em pores do sol, encontrada nos alvoreceres, enlaçada pelo verde escuro e lapidada pelas pedras de seu leito. Suas águas já não são mais lágrimas de desesperança.

Há muito não encontra a chave que abre as portas da velha fazenda. Mas desses tempos nada restaram, filha das águas. Você resistiu ao luto e hoje repousa pacífica sobre areias douradas que aludem o ouro do café. Aquele que enchia xícaras de prata tomadas por finas mãos. Daquela época, só você resiste impávida. Tudo virou ruínas sucumbidas pela severidade do tempo.

Sabe, pequena cachoeirinha de sonhos estivais, que eu entrei pela porta daquela casa e nada vi senão passado destruído e pisoteado. O entardecer fantasmagórico me açoitou pelo assoalho carcomido por cupins e carunchos. Nenhuma gota de avareza restou nos frascos de vidro da cristaleira. E as paredes alvejadas se desfazem em cacos pelos corredores. Ao longe, apenas suas notas carregando os segredos de uma época devastada. Época de velas opulentas iluminando grandes salões que agora repousam no escuro de suas tragédias premeditadas.

Ah, cascata! Se soubesse o peso dessas lembranças creio que se cansaria de correr. Creio também que a tranquilidade não escolheria você para fazer morada. E as aves não viriam até as margens para molharem o bico na água que corre despreocupada, afinal, não carrega consigo a culpa de prantos desconsolados nem a dor de lanhos ainda abertos. Continue, pequena queda d´água, pois este que aqui te escreve um dia também passará, e você continuará a ecoar melodias no breu de noites escuras sem o fino toque da lua.

Texto originalmente publicado no Penasso Cronista.

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