Portão de Ferro

Aquele portão de ferro me trouxe um espectro assombroso de tempos apinhados em lágrimas escorridas por rostos sofridos, calos em mãos que nunca pegaram numa caneta, terços rezados com afinco em noites de desespero, vida vivida no canto de barro e madeira carcomida. A igreja de portas fechadas; da escada, só lembranças de sapatos enlameados pelo percursos.

Hoje, um jardim repousa ali. Suave como uma brisa tímida passando rasteira nos calcanhares de quem adentrava aqueles portais com altivez. A igreja não era para todos. Na fazenda havia um rio há muito explorado: de sangue, correndo vivo nas entrelinhas da história. A flores que tiram da terra seus nutrientes sequer sabem o que a mesma terra usou para nutrir-se quando uma mão no arado era mais valiosa do que no lápis. E apesar da severidade do tempo, a pequena igrejinha resistiu com as paredes alvejadas. 

No adro, pedras encaixadas expondo manchas da estação. O musgo ressequido tomou conta dos lugares ocupados pelas pranteadoras dos senhores de café que ali eram sepultados. Mas e os outros? O ouro negro que não reluzia à luz do candeeiro trazia consigo o sabor amargo das vidas que rasgaram seus corpos e escancararam suas almas, buscando até o último suspiro a esperança mantida no frasco de seus sonhos arruinados.

Uma singeleza natural estampada no céu do entardecer trouxe sons da mata ecoados pelos degraus da igreja de portas fechadas. A casa grande ao longe pouco a pouco firmando a ruina de sua altivez, com paredes caídas e portas sem trincos, ainda resistia na paisagem. Dentro, só lembranças de passos austeros no assoalho. O esplendor se transformou em esquecimento; e nada mais deslumbra os olhares, pois tudo se cobriu de poeira, cacos e lascas.

Encontrei tranquilidade na pequena escada do adro, e iludido pela beleza do laranja no céu lancei um sorriso tímido para registrar o momento. Talvez em vão. Logo que avistei o beiral do telhado e vi as telhas disformes, a feição do meu rosto mudou. Mirei ao chão e vi um lindo arbusto de antúrio em vigor rubro e lembrei-me do que regara aquele chão por anos a fio. Aquelas telhas significavam mais do que aparentavam. O barro ganhou forma em pernas que caminhavam para servir, e nada recebiam em troca senão o açoite e o peso das correntes.

Quando o sol se pôs e a mata pareceu engolir a fazenda em escuridão, parti levando comigo apenas o frio das hastes de ferro que toquei para abrir aquele portão. Na mente, mil histórias. E durante muitas noites interrompi a escrita para observar mais atentamente o passar do tempo: os dias se vão em semanas; as semanas, em meses; e logo os anos surgem trazendo escombro aos anseios ilusórios que preenchem o coração de orgulho. Da terra, nada levamos; apenas uma grosseira sensação de lembranças que se perpetuaram em aberturas e fechaduras de velhos portões emperrados.

Texto originalmente publicado no Penasso Cronista.

Comentários

  1. Amei! Quantos portões, deixamos esquecidos em nossas vidas...

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    1. Obrigado pelo seu comentário! =)
      Fico feliz que tenha gostado!

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